O orgão invisível

Março 6, 2008

Se morresse amanhã poder-se-ia escrever num breve texto de despedida que lhe faltava um orgão invisível, situado aparentemente entre a cabeça e o estomago, que no caso dela, devido a uma qualquer má formação adquirida nos últimos vinte anos, desaparecera sem deixar rasto. Desaparecera é a palavra certa. Os pais tinham a certeza de que lhes tinha nascido uma filha em nada diferente das filhas das outras famílias e jurariam pelo que tinham de mais sagrado que nos primeiros anos de vida, ele, o orgão invisível, estava lá.
Aliás, na mesma gaveta onde guardavam as vacinas, os papeis dos seguros e outros documentos auto-biográficos, guardavam também os comprovativos dos orgãos invisíveis, um para cada membro da família. O dela também lá estava, de capa amarela como os outros, com um número de série como os outros – z502 – e em nada diferia do da irmã mais nova ou do dos pais.
Os médicos tinham olhado atentamente para o resultado dos exames a que se submetera, mas como havia muito pouco a fazer, mandaram-na para casa com uma caixinha verde debaixo do braço e a recomendação explícita de passar a frequentar durante dois ou três meses um grupo de apoio a pessoas que como ela tinham uma carência invisível mas vital. A ciência sentia-se impotente para lhe restituir o orgão em falta, não tinha conhecimento de nenhum dador disponível e por esta e por outras é que ela passara os ultimos vinte anos numa espécia de redoma pessoal que a tornava imune às rugas e à passagem dos anos.
Para a história não iam ficar, nem o pai, nem a mãe, nem a irmãzinha normal. Ia ficar ela, que perdera um orgão invisível, mas vital, e que só por isso criara formas de adaptação ao mundo que não eram as usuais. Chegou mesmo a aparecer num livro de trezentas páginas onde à difícil adaptação do organismo X, se deu o nome genérico de “Tratado Analítico e Regularizador do Síndrome da Via Única”, nome esse que aparentemente não queria dizer nada, mas que para os entendidos se viria a tornar num livro incontornável, sem o qual, o a partir daí chamado, “Síndrome da Via Única” não puderia ser estudado.