Duas pessoas que passam o tempo a conversar, descobrem que não têm mais nada para dizer uma à outra, e acabam transformadas em pedras, uma em frente da outra.

Sobre sapatos

Março 6, 2008

Comprei uns Hush Puppies azuis. Havia na loja uma mulher com uns amarelos já muito batidos que eram fantásticos. Tinha quarenta e tal anos e uma mochila onde pendurara a camisola. Disse-me que os dela, os amarelos, já tinham um ano e eram fantásticos. Disse-me também, que só porque socialmente os sapatos não se podiam usar naquele estado é que ia comprar uns novos. Que os antigos tinham mais personalidade e que gostava da maneira como os dedos dos pés os tinham marcado. Calçava o 36 e podia-se dizer que tinha uns pés queridos. A mim que calço o 39 nunca ninguém me vai dizer isso. A vida não é justa.

Via de costas. Era uma mulher extremamente bonita. Alta, elegante, a roupa caia-lhe bem. Calças brancas e um mapa na mão. Não lhe conseguia ver a cara, mas tudo indicava ser uma mulher interessante. Olhava em volta como se procura-se alguma coisa, ou tão só como se passeasse sem um objectivo defenido.
Acabei por me cruzar com ela. Com dois pêssegos na mão olhei-a interrogativamente. Ela também olhou para mim enquanto dizia olá. Não precisava de nenhuma informação, nem estava perdida. Era realmente simpática. Disse-me que se limitava a passear por Lisboa, mapa na mão e o ar de quem vai um pouco à deriva, sem rumo fixo.
Parecia estrangeira, mas falava bem português. Imagino, não sei bem porque, que fosse italiana, mas não tenho a certeza. Fez-me ficar a pensar na facilidade com que disse olá, francamente, sem desconfianças. Há pessoas realmente equilibradas. Por dentro e por fora.

Comboio Cascais-Lisboa

Março 6, 2008

Uma mulher branca quatro bancos à minha frente parece estar fascinada pelo homem negro com quem conversa. A maneira como olha para os olhos dele, para a boca, para as sobrancelhas, para as mãos, não é um olhar casual. É como se lhe tocasse. O seu olhar segue de uma maneira tão insistente os contornos das suas feições que eu acabo por reparar nela. Aparentemente está calma. A sua postura física é bastante relaxada e nada nela – além do olhar – demonstra interesse. E é esse olhar que me leva a querer saber como é que ele é. Se é bonito, se se veste bem, se tem alguma cracterística física que o torne excepcional. Mas nada disso acontece. Para mim é um homem igual a tantos outros. Não há nada nele que me desperte a atenção. Só o modo como a mulher de gabardine cinzenta o olhava.

O orgão invisível

Março 6, 2008

Se morresse amanhã poder-se-ia escrever num breve texto de despedida que lhe faltava um orgão invisível, situado aparentemente entre a cabeça e o estomago, que no caso dela, devido a uma qualquer má formação adquirida nos últimos vinte anos, desaparecera sem deixar rasto. Desaparecera é a palavra certa. Os pais tinham a certeza de que lhes tinha nascido uma filha em nada diferente das filhas das outras famílias e jurariam pelo que tinham de mais sagrado que nos primeiros anos de vida, ele, o orgão invisível, estava lá.
Aliás, na mesma gaveta onde guardavam as vacinas, os papeis dos seguros e outros documentos auto-biográficos, guardavam também os comprovativos dos orgãos invisíveis, um para cada membro da família. O dela também lá estava, de capa amarela como os outros, com um número de série como os outros – z502 – e em nada diferia do da irmã mais nova ou do dos pais.
Os médicos tinham olhado atentamente para o resultado dos exames a que se submetera, mas como havia muito pouco a fazer, mandaram-na para casa com uma caixinha verde debaixo do braço e a recomendação explícita de passar a frequentar durante dois ou três meses um grupo de apoio a pessoas que como ela tinham uma carência invisível mas vital. A ciência sentia-se impotente para lhe restituir o orgão em falta, não tinha conhecimento de nenhum dador disponível e por esta e por outras é que ela passara os ultimos vinte anos numa espécia de redoma pessoal que a tornava imune às rugas e à passagem dos anos.
Para a história não iam ficar, nem o pai, nem a mãe, nem a irmãzinha normal. Ia ficar ela, que perdera um orgão invisível, mas vital, e que só por isso criara formas de adaptação ao mundo que não eram as usuais. Chegou mesmo a aparecer num livro de trezentas páginas onde à difícil adaptação do organismo X, se deu o nome genérico de “Tratado Analítico e Regularizador do Síndrome da Via Única”, nome esse que aparentemente não queria dizer nada, mas que para os entendidos se viria a tornar num livro incontornável, sem o qual, o a partir daí chamado, “Síndrome da Via Única” não puderia ser estudado.

Do passado veem dias

Março 6, 2008

Não se percebe se é a falta de dinheiro, ou uma acomodação às coisas como elas são. Um deixa andar – morta a vontade de mudar – de onde se desprende uma modorra que nos empurra para o sono eterno. Adormece-se nestas casas. Definha-se. O tempo, esse, parece que parou. Os móveis vão-se degradando e o papel das paredes perdendo a côr. Ninguém sabe como é que as coisas chegaram a este ponto. Uma peça ou outra ao acaso, sobressai. Design “anos cinquenta”. O resto são linóleos remendados, e sofás tapados com panos.
Acabamos fatalmente por descobrir que se não mudarmos rapidamente de ambiente, acabaremos fatalmente transformados em gigantescos caracóis que se hão-de arrastar escadas abaixo até atingirem o patamar redentor da rua que lhes devolverá a forma humana. Ámen, agradecemos então.

Five o’clock tea

Março 6, 2008

O António Meireles e o Bernardo T. tomam chá numa daquelas pastelarias agradáveis que existem na Lapa. Estão rodeados de gente como eles próprios. Sapatos com um berloque em forma de vassourinha, calças cremes, e embora pareça mentira, camisas às riscas. Boas marcas e cremes faciais em dia. As famílias vêm a apurar a raça à várias gerações. Não há nada a fazer. Nós os comuns mortais nunca teremos o mesmo ar cuidado que eles ostentam. Por muito que façamos, por muito que nos tratemos todos por você, nunca vamos atingir a “performance” desta gente.
O chá servido por um empregado fardado a rigor, que por acaso é simpático, e que também por acaso não é para aqui chamado, e o ambiente copiado de uma daquelas revistas caras que se encontram nos antiquários fazem-nos sentir em casa. O Bernardo sempre se sentiu bem em sítios como este. São quase iguais à sua própria sala de estar. O António é um bocadinho diferente, às vezes gosta de frequentar outro tipo de circuitos.
Entre um croissant barrado com doce de morango, e os dedos que são judiciosamente limpos no guardanapo de papel, o António começou a falar sobre uma amiga que conheceu em Maio.
– Ontem à noite queria tanto sonhar com a Rita – diz ele enquanto afasta o lenço do pesoço – Estaria lindissima. Sapatos pretos e aquelas pernas que tu bem sabes.
– E que tal correu? – perguntou o Bernardo, que já reparara nas olheiras do amigo.
– Horrível – e sentia-se que não estava à vontade. – Esta Rita é uma obcessão. Custou-me imenso adormecer. E nem mesmo o livrinho de poesia erótica que me ajuda tanto nestas crises, fez com que sonhasse com ela. Estou de rastos.

Mascalzone

Março 6, 2008

Um príncipe – cheio de charme e lábia – deixa na beira da estrada, num dia de chuva, três princesas que pedem boleia. Porquê? Perguntamos todos nós… Há muitas hipotses mas só uma delas é verdadeira. Além destas duas, aceitam-se todas as contribuições que possam ajudar a fazer luz sobre o assunto.

Hipótese 1
Porque são gordas e não cabem todas no carro.
“Nem pensar em estragar a suspensão”

Hipótese 2
Porque é tão vaidoso que nem as vê, ocupado como está a endireitar a gravata.
“O que era aquilo na beira da estrada?”

O Maestro

Março 5, 2008

O maestro estava encantado com Brahams. Brahams na sua morada final também se mostrava encantado. A orquestra qual amante maleável a todos os seus caprichos, desdobrava-se em brilhantes execuções individuais que empurravam o público nota a nota para a euforia das grandes noites. E este, enorme animal amestrado que sabe exactamente o que se espera dele, aguardava ansiosamente a chegada de cada uma dessas notas sem ousar respirar. Uma insensatez absurda invadia os gestos e imobilizava os olhares.

Emília Hercules

Março 5, 2008

Pertencia a uma sub-espécie especialmente grande e voraz de classificação incerta, que remetia para obscuros livros de zoologia e que na maior parte dos casos passava despercebida a quem se dava ao trabalho de os consultar.
De A a Z organizam-se todos os outros mundos, mas não o delas. Através de métodos que correspondiam em tudo aos seus requintados paladres, distribuiam atentamente nomes e moradas em pequenas folhas, onde com alguma dificuldade se conseguia ler: “Pessoas sobremesa: para saborear lentamente”, “Pessoas Digestivo: para consumir com moderação” e assim sucessivamente, num desfile feérico de folhas mais ou menos requintadas, conforme lhes apetecia mais uma refeição ligeira, ou uma sucessão de pratos cuidadosamente confeccionados, que demoravam tempo a ser consumidos.
Mas a maior parte das pessoas que constavam nessas listas eram apenas isso mesmo, a combinação “gourmet” perfeita. Não eram reais. Não faziam parte da pequena lista de amigos e conhecidos, que esses sim existiam, e por baixo dos quais se podia ler “Consumir pouco de cada vez e nunca em casa”. Os outros, os irremediávelmente irreais, precisavam quase sempre de um texto de apresentação que funcionava muitas vezes como indicativo do estado do tempo. “Abril. Rapaz aprumado na sua camisola verde pistacho que vislumbrei num cinema em dia de chuva e que coloquei imediatamente na secção: “Petiscos: claramente para não abusar.””